Por uma morte com amor

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Eu nunca fui uma pessoa muito boa com tristezas. Não gosto. Odeio aquela sensação de impotência e de escuridão que toma nossos corações e tira toda esperança. Sou do time daquelas que chora a noite toda e depois coloca um sorriso no rosto, e vai viver.

Talvez porque de onde eu venho as pessoas viram muita dor, mas todas descobriram a resiliência. E eu acabei aprendendo também.

Me lembro bem direitinho da primeira vez que eu descobri a tristeza de verdade. Aquela que eu falei lá em cima, sabe? Que acaba com toda esperança e te larga numa escuridão que, de tão escura, tira até sua vontade de sair dela.

Eu tinha 8 anos e minha avó tinha acabado de ser tirada de mim por uma coisa que eu tinha acabado de descobrir que existia: o câncer.

Essa também foi a primeira vez que eu lidei com essa megera que a gente costuma chamar de morte.

Achei ela tão feia, tão sofrida e tão indigna de chegar ali e levar um pedaço tão grande da minha alegria, que passei a evitar qualquer tipo de contato com ela. Mesmo nos meus pensamentos, eu não permitia que ela entrasse.

Até que chegou 2014.

2014 foi o ano que a morte se cansou de ser expulsa dos meus pensamentos e resolveu fazer parte da minha vida de vez. Foi o ano que eu conheci a medicina e também foi o ano que eu tive as maiores perdas da minha vida.

E eu, na minha ignorância e imaturidade, passei a correr da morte. Gente doente automaticamente me fazia tremer na base e correr pra longe, muitas vezes literalemente. Já pensou nisso? Alguém que queria ser médica, com pavor da morte?

Eu achava que estava sozinha nessa, mas acabei notando que a grande maioria dos meus colegas de curso tem pavor da morte.

E isso é bem esquisito, né? Porque no dia que nascemos ganhamos várias dúvidas, mas só uma certeza: um dia iremos morrer. Todos. Sem exceção.

Por algum tempo eu me fechei na casinha do medo da morte e fui mudando tudo que eu era, da personalidade às opiniões. Até que a vida me obrigou a olhar sua parceira de frente mais uma vez.

QUE DOR. Quase não sobrevivi. Foi a fase mais dolorosa da minha vida, porque, finalmente, eu estava com todas as minhas feridas expostas e, quando a vida me olhava de frente, notei que não me permiti curar nenhuma delas. Estavam todas abertas, infeccionadas e apodrecendo.

Passei meses tentanto sobreviver a dor absurda que é fechar feridas que permaneceram abertas tanto tempo. Nem sei como foi que consegui, afinal, foi preciso abrir ainda mais algumas delas.

Apesar de toda essa dor, resolvi que queria conhecer quem tinha me causado tantos danos. Comecei a ler, ouvir e perguntar sobre a morte e me surpreendi, porque, dentro da faculdade de medicina, absolutamente NINGÚEM queria falar sobre a morte.

As pessoas se espantavam, se chocavam e algumas até me perguntaram o porquê de eu estar tão interessada num tema tão “esquisito”.

Bom, acabei aprendendo bastante com aqueles mais simples, nos seus oitenta e tantos anos e que olhavam a aproximação da tão temida morte, como uma amiga antiga.

O fato é que eu descobri que a morte não é sempre feia. A morte e o processo do morrer dependem muito de como nós lidamos com ela. E quando digo “nós”, digo também os que estão por perto da pessoa que experimenta a morte.

A morte é solitária, claro. Não importa a multidão que esteja ao seu lado, a sua morte é um evento que só você vai viver. Nossas famílias, nossos amigos viverão um processo diferente e também muito rico, mas nunca será o mesmo.

Acho que talvez seja  isso que nos amedontra, essa solidão que teremos enfrentar no momento mais desconhecido que viveremos.

Mas fiquei refletindo: se tivemos uma vida bem vivida – e por bem vivida, entenda uma vida de bons e maus momentos – porque a despedida precisa ser ruim? Mesmo que seja um processo, esse de morrer, porque não podemos fazer desses últimos momentos algo digno? No período da morte, é muito comum que as pessoas enxerguem a beleza de tudo que viveram e, talvez, esse momento seja mais alegre que triste.

Doidera pensar nisso, né? Na morte como um momento de alegria.

Tenho acreditado cada vez mais que é assim.

No fim das contas, percebi que como amiga, familiar, conhecida e – no futuro – como médica, minha maior função é me desprender do medo que sinto da morte e abraçá-la como um amiga. Porque, na verdade, só assim poderei dar uma morte digna àqueles amo. Só assim poderei estar presente, não só de corpo, mas de alma para mostrar àquele que morre, o quanto o amo e me importo com ele.

Queria ter aprendido isso antes, mas talvez as minhas experiências precisassem ser construídas dessa maneira. E hoje sou grata a tudo isso.

Escrevi tanto pra dizer que aquela balela que “a dor vai passar”, é só uma frase feita, mas com o tempo (e se você assim escolher) a morte pode deixar de ser sua inimiga e passar a ser apenas mais um instrumento para mostrar amor (o seu e o de D’us).

 

Um grande abraço a quem conseguiu chegar até aqui (sei que não é o tema mais comum do mundo). Que D’us nos abençoe!

LR

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